Samba e Resistência

em Belém do Pará

Mulheres e afro-religiosos fazem do ritmo um instrumento de luta nas rodas da capital paraense

Por Ana Laura Costa e Susan Santiago

O Samba &

o Santo:

Sambistas de Belém reforçam laços com a religiosidade de matriz africana

Afro-religiosos usam a arte para fazer frente ao preconceito e desconstruir os estigmas sustentados pela intolerância e o racismo religioso

Por Susan Santiago

Eles pedem a benção para entrar na roda e vivenciá-las como verdadeiros rituais. Nos pescoços, as guias. No repertório, em meio a letras de amor, luta e trabalho, estão também Orixás, encantados, fundamentos da liturgia de terreiro, a descrição de ritos e relatos de experiências com o sagrado.


Artistas da nova geração do samba em Belém transportam a vivência dos terreiros para as rodas de samba e revigoram a relação entre o ritmo e a religiosidade de matriz africana.


A musicalidade herdada dos povos da diáspora negra é usada como ferramenta para disseminar conhecimentos e faz da roda de samba um espaço de encontro, celebração e também de resistência à intolerância e ao racismo religioso.


Religiões de Matriz Africana

Conheça alguns cultos existentes no Brasil

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Ketu

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Candomblé

Termo genérico que faz referência a diversas tradições criadas ou recriadas no Brasil, especialmente por povos oriundos dos territórios hoje conhecidos como Angola, Nigéria e República do Benim

Divide-se, conforme a origem étnica, em nações:

Maior nação do candomblé brasileiro, tem origem na região que atualmente abriga Benim e Nigéria e caracteriza-se, principalmente, pelo uso do idioma Iorubá.

Banto

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Diferencia-se pelo toque dos tambores. Foi constituído a partir do que hoje se conhece como os países Angola e Congo.

Jeje

Não é a denominação de uma nação em si, remete à palavra “estrangeiro” e começou a ser usada pelos iorubás para denominar os habitantes de regiões vizinhas.

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Umbanda

religião sincrética, que reúne catolicismo, a tradição dos Orixás e espíritos de origem indígena. Adota a comunicação com os espíritos.

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Tambor de Mina

Religião afro-brasileira surgida no Maranhão, que se expandiu por estados do norte, que cultua voduns, orixás, gentis, caboclos e encantados.

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Culto de Ifá

Tradicional da África, cultua exclusivamente os Orixás. Tem um maior número de Orixás

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Terecô

Derivada do Tambor de Mina, assemelha-se ao Candomblé.Os sacerdotes atuam como rezadores ou curandeiro; cultuam caboclos e integram elementos de religiões africanas

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Xangô

Presente em Pernambuco, é marcado pela adoração a vários Orixás, santos e deuses ligados à cultura iorubá, onde destaca-se o culto a Orumilá, senhor dos jogos de búzios.

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Jurema

Muito presente no Nordeste, é marcada pela ingestão da bebida da Jurema que, segundo os participantes, os aproxima da “Cidade da Jurema”, que seria composta por reinos e cidades espirituais.

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Espiritualidade que Inspira

Os caminhos para que se ligassem com a religiosidade de matriz africana foram diferentes, mas todos escolheram transportá-la para um mesmo destino: a música. Nas rodas de samba da Capital paraense eles representam uma nova geração de artistas que faz questão de reforçar a ligação originária entre o samba e os terreiros.


Carla Cabral, Diego Xavier e Karen Tavares usam a música para falar das vivências enquanto praticantes de religiões de matriz africana e fazem dela instrumento na luta contra estigmas e preconceitos.



Na linha de cura

“De alguma forma ou de outra eu coloco ali numa letra minha um pouco do Tambor de Mina. Se eu puder ser um instrumento de transmissão disso, eu fico muito feliz”. Ao descrever a relação da religiosidade com a sua música, a compositora, cavaquinista e produtora cultural, Carla Cabral, diz que busca expressar em suas letras os fundamentos praticados pela sua religião e faz dessa ligação uma atividade de cura.


Descendente de uma avó umbandista e curandeira, Carla pontua que sua primeira formação religiosa foi o catolicismo, porém, ao tornar-se frequentadora de um terreiro de Tambor de Mina passou a recorrer à zeladora da casa (hoje sua mãe de santo) para tirar dúvidas em relação à religião. Daí começou a compreender melhor as alusões feitas por compositores que já faziam parte das suas referências musicais. “Cada vez que eu ia lá [no terreiro], todas as músicas que eu já escutava, tudo aquilo ficava ecoando na minha cabeça. Eu falava: olha! aquela música falou isso!”.


A vivência e os aprendizados adquiridos no terreiro passaram a lhe inspirar e, com autorização e orientação de sua mãe de santo, os elementos da religiosidade passaram a fazer parte de suas composições.


“Quando eu componho, mais do que nunca, fico pensando que a palavra que eu levar pro outro ouvir ou a melodia que eu executar, a melodia que porventura eu criar, ela tem que ser alguma coisa que cure alguém”, reflete a compositora.

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Do berço pra roda

Logo ao apresentar-se, Diego Xavier já revela que a música e a espiritualidade de matriz africana são parte indissociáveis de sua vida desde o berço. Neto do saudoso violonista Osvaldo Barros, o Vaíco, ele afirma ter nascido "banhado pelas águas de Iemanjá", já que divide sua data de nascimento (2 de fevereiro) com os festejos da Orixá e relata que desde criança vivencia a atmosfera cultural e religiosa da Umbanda, que começou a frequentar ainda pequeno junto aos avós.


O fato de estar inserido no contexto das religiões de matriz africana desde a infância fez com que a temática se entremeasse em sua vivência musical, tornando a composição um meio para falar do tema e ressaltar elementos que fazem parte da vivência no Santo e da sua própria história. "Hoje, como artista, eu encontrei na composição uma maneira de falar desses elementos que tanto me influenciaram ao longo dessa minha trajetória", declara Diego.


Ele ainda afirma perceber que elementos descritos nas músicas enquanto vivência particular acabam sendo compartilhados entre pessoas com histórias de vida parecidas com a sua. "É como se eu tivesse contando a minha história. E, a partir do momento do contato com o público em geral, eu falo 'égua! a história não é só minha'”, relata o jovem.


Diego ressalta, ainda, que além de músico é um educador preto e, como tal, optou por usar sua voz "para exaltar não somente a beleza [da religião], mas também como forma de clamar por justiça aos menos favorecidos e também por apresentar e reapresentar, cada vez mais, a riqueza da nossa religião e da música, porque eu acredito que ela tem um grande poder transformador", afirma.

Força que vem do Axé

Karen Tavares é cantora profissional há cerca de 21 anos e há 16 tem o samba como base do seu trabalho na música e foi nas rodas de samba e de carimbó que iniciou o seu contato com a religiosidade de matriz africana, a qual ela se refere com muita deferência como "o Axé".

"Não tive essa vivência na infância, mas tive essa vivência através das rodas de samba e vim sentindo essa ligação com o Axé (....). Isso foi me aproximando de pessoas, me aproximando dessas informações, do Santo, da sensibilidade. E fui relacionando isso, até que cheguei no terreiro", relata a intérprete, hoje praticante do culto Tambor de Mina, de Nação Jeje-Nagô.


O ingresso a religiosidade de matriz africana foi fundamental para que Karen encontrasse a identidade do seu trabalho musical. Sob a influência dos tambores e batuques, seu primeiro disco "Mandou Chamar" é um verdadeiro tributo à religiosidade outrora totalmente desconhecida que ela considera ter fortalecido o seu trabalho.


Karen pontua que esse processo de descoberta e experiências dentro do terreiro sempre foi muito positivo para si e, por isso ao cantar sobre essas vivências busca transmitir tudo de positivo que a religião lhe propicia.


"Eu quero levar isso pras pessoas. Tudo de bom que chegou pra mim, a beleza que eu vi quando eu cheguei no terreiro, todas as coisas boas que o Santo, a vivência do Santo, trouxe pra mim", assinala a cantora.

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Carla

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Eu sempre fui uma compositora que fala de amor. E aí quando eu me vejo lembrando que sou filha de Cabocla Jarina, eu junto amor com a cura. Eu até falo de fundamento, sobretudo, o que eu tento dentro da letra, do samba, da letra que fala da nossa vivência espiritual de matriz africana é falar nesse aspecto. É falar sobre a força da natureza dos Orixás, dos caboclos, sobre o que eles têm de bom a nos transformar. Porque é assim que eu me sinto dentro da religião, sendo transformada.


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Diego

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Como músico e educador preto, eu de um tempo pra cá achei deveria usar a minha voz pra exaltar, não somente a beleza, mas também por clamar por justiça aos menos favorecidos e também por apresentar e reapresentar, cada vez mais, a riqueza da nossa religião e também da música, porque eu acredito que ela tem um grande poder transformador e também sociocultural do nosso próprio Brasil.

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Karen

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Eu me sinto na responsabilidade de mostrar essa beleza pras pessoas e quebrar mais esse preconceito que eu acho que é um processo bonito que vem acontecendo de uns tempos pra cá, de resgate dessa cultura, da positividade dessa cultura e da gente valorizar uma cultura que historicamente foi discriminada. A cultura dos povos africanos, dos povos indígenas. (...) Eu acho que todo o axé que eu recebi do meu povo, de minha mãe Yemanjá, eu retribuo com esse amor no meu trabalho.



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GLOSSÁRIO

Para ouvir e entender

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Abassá: templo, terreiro


Abian: filho(a) de Santo não iniciado(a) na religião


Abebê: leque circular de metal; ferramenta de Orixás femininas Oxum (dourado)

e Yemanjá (prateado)


Adjá: espécie de instrumento ritual como uma campainha metálica;


Aiê: Terra, mundo dos homens


Alá: pano, pano branco, pálio de Oxalá


Axé: força mística dos Orixás; força vital, que transforma o mundo


Banto: relativo ao povo Banto e suas línguas


Congá: altar


Ebó: sacrifício, oferenda, despacho


Gira: espécie de culto


Guia: fio de contas usado pelos filhos de santo para representar seus guias e Orixás,

sendo que cada cor, ou combinação de cores, simboliza uma entidade


Jeje: relativo ao povo Jeje, oriundo do “Reino de Daomé”,

refere-se às nações que cultuam Voduns. Em Iorubá: estrangeiro, desconhecido.


Ogã: cargo sacerdotal masculino do candomblé, incluindo o tocador, o sacrificador e homens de prestígio ligados afetivamente aos grupos de culto


Ori: divindade da cabeça de cada indivíduo; cabeça, destino;


Orixá: divindade; Deus do panteão iorubá;


Voduns: divindades Daomeanas cultuadas nas nações Jeje, sendo que alguns foram incorporados ao panteão iorubá como Orixás;


Yabá: designação de Orixás femininos; sua tradução é “Mãe Rainha”


Xirê: ritual em que filhos e filhas de santo cantam e dançam numa roda para todos os Orixás.

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Intolerância não silencia

Ao apresentarem repertórios com a presença marcante da religiosidade de matriz africana, os artistas se expõem a um contexto incômodo: o da intolerância e do racismo religioso, cujo aumento nas denúncias aponta uma tendência crescente.


Nos anos de 2020 e 2021, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Segup), foi registrado um aumento de mais de 300% nas denúncias relativas à intolerância religiosa na Região Metropolitana de Belém.


No Brasil, dados do Portal Disque 100 apontam um crescimento de cerca de 273,6% nas denúncias relativas à intolerância religiosa, registrando 353 denúncias em 2020 e 966 casos denunciados em 2021.

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INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

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Denúncias registradas nos anos

de 2020 e 2021

Na Região Metropolitana de Belém

2020

2021

23 casos

72 casos

*Fonte: SIAC/SEGUP

No Brasil

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2020

2021

353 casos

966 casos

*Fonte: Portal Disque 100

DENUNCIE CASOS

DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

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Disque 100 - Chamadas telefônicas gratuitas para denúncia de intolerância religiosa junto à Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), do Ministério dos Direitos Humanos


Delegacia de Combate a Crimes Discriminatórios e Homofóbicos - Rua Avertano Rocha, 417, Campina, Belém

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As dificuldades geradas por este cenário de intolerância são bem conhecidas

por quem atua cotidianamente na defesa dos direitos dos Povos Tradicionais

de Matriz Africana, como o Babalorixá e ativista social Denilson de Oxaguian.


“A gente vê que muitas pessoas negam, inclusive até dentro das suas origens de família, a sua relação com as matrizes africanas. Tudo que não tem o caráter cristão, branco, passa pelo processo de demonização, de marginalização”, pontua o afro-religioso.


Por outro lado, o ativista vê na arte uma potencial aliada na luta contra a intolerância e o racismo religioso, desde que a atuação ocorra de forma legítima. “Não é toda arte que vai conseguir explicar pra sociedade um pouco da nossa história enquanto povos tradicionais. Porque existem artes que falam ao coração e existem formas de fazer arte que são vendidas como produto”, pontuou.



" É poético, é amoroso, é bonito, mas tem que ser político."

(Carla Cabral)

Para os artistas, a música serve como manifesto e ferramenta contra esse cenário de ameaças e negação de direitos ao povo de Santo.


Carla Cabral já respondeu a um episódio de intolerância religiosa em letra e melodia. Ela compôs “do terço à guia” como um protesto por respeito e amor diante das diferenças.


“É poético, é amoroso, é bonito, mas tem que ser político. Porque se não, a gente vai ficar sempre relegado ao terreiro, que é longe pra caramba porque não deixavam a gente ficar no centro. A gente não pode esquecer da nossa história, do nosso apagamento, que nos invisibilizam”, expõe a compositora.


Diego Xavier afirma que a composição é uma maneira de falar dos elementos da cultura de terreiro, que o influenciam desde a infância. E revelam ainda, que fazer música é parte dos seus atos cotidianos de resistência.


“Me visto com essas roupas, canto as nossas belezas. E sempre será a minha forma de combater. Não é nem a minha arma, é a minha armadura, contra qualquer intolerância e preconceito”, pontua o músico.

Karen Tavares confronta os estigmas e preconceitos em relação à religião utilizando a música como uma forma de transmitir a beleza dos ritos, a gratidão e o amor que tem pelo Santo.


“Eu quero levar isso pras pessoas. Tudo de bom que chegou pra mim, a beleza que eu vi quando eu cheguei no terreiro”, declara a cantora.

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Olhar Decolonial

“As religiões de matriz africana, não são religiões apenas, no sentido judáico-cristão, elas são vivências, onde a fé também é um elemento” - Marilu Campelo


A antropóloga Marilu Campelo destaca que ao refletirmos sobre a relação entre o samba e as religiões de matriz africana, não podemos desconsiderar nossa origem colonial. Essa característica contribui diretamente para a desvalorização das contribuições dos povos da diáspora africana para a nossa cultura.


“Nesses epistemicídios, nós criamos uma ideia de um conhecimento, visto a partir de um ponto de vista. Então, tudo o que se remete à uma palavrinha que se chama “África” é desqualificado”, analisa a pesquisadora.


A pesquisadora da Universidade Federal do Pará aponta o racismo como elemento central para esse contexto de desvalorização e apagamento das raízes ancestrais do samba.


“O racismo mata, não só no físico, ele mata simbolicamente, ele marca, deixa marcas que são difíceis para muitas pessoas superarem. E esse racismo sobre um corpo negro, macumbeiro, ele é tríplicamente mais maléfico”, ressalta.

Especialista em estudos relacionados à população afro-brasileira, Marilu Campelo avalia que expressar a religiosidade de matriz africana nos repertórios musicais pode ser um importante instrumentos de empoderamento e resistência.


“Cada vez mais é importante valorizar esse artista, que traz a sua relação com a religião. Porque através do canto, da música, da dança, se pode passar uma visão positiva das culturas dessas sociedades”, analisa a pesquisadora.

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A roda como ritual

Quando perguntados se as rodas de samba são rituais, os artistas entrevistados foram unânimes em asseverar que sim. Ainda que sobre elas não opere nenhuma liturgia específica, as rodas refletem as vivências religiosas adquiridas nos terreiros e configuram-se como uma extensão destes, onde se comunga do axé que circula na ligação entre sagrado e profano; palmas e cantos; corpo e alma; contemporâneo e ancestral.


Neste passo, vemos que as rodas podem guardar experiências pessoais únicas, atravessadas pela relação entre a vida pessoal e a religiosidade dos participantes, como é relatado por Diego Xavier:


“De um tempo pra cá as rodas de samba me deixaram mais próximo da minha raiz ancestral, porque foi lá que eu remeti às palmas que eu vi na Umbanda quando eu acompanhava os meus avós, quando eu tinha 6, 7 anos. E que hoje eu posso, nessa mesma roda, estar cantando os meus sambas", relata o sambista.


Karen Tavares revela que ao montar um repertório para cantar nas rodas de samba procura respeitar os fundamentos aprendidos no Tambor de Minha e afirma que é inevitável, para quem é do Santo, não sentir a força do axé que circula naquele espaço.


"Então, quando eu faço as rodas de samba hoje em dia, eu já procuro respeitar, pedir licença, pedir a benção dos meus guias, dos orixás, da encantaria, porque eu sei que eles vão estar ali comigo", declara.


Carla Cabral sugere àqueles que querem perceber mais profundamente a potência ritual da roda de samba que vivenciem também o terreiro e aponta o respeito como elemento fundamental para que as rodas se potencializem como elo de ligação com o sagrado.


“Pra quem só vive a roda de samba, não vive o terreiro, eu aconselho a um dia viver o terreiro, porque a gente olha pra roda de outra forma, a gente percebe o quanto que o samba é uma celebração ancestral. Não tem como separá-los”, pontua a compositora.


E completa: "Eu sinto muito pra artistas que não conseguem perceber o quanto que existe ali de ritual dentro de uma roda de samba, é muito forte. A gente tá mexendo com coisa séria, muito séria. E que bom. Se a gente olha com mais respeito, vai ser melhor ainda!"

Tem mulher no samba:

Legado de Tia Ciata resiste em Belém

Por Ana Laura Costa

Desde que o samba é samba, as mulheres tiveram papel fundamental para que o ritmo se perpetuasse – mesmo diante da perseguição estatal racista – tornando-se o que é hoje: patrimônio cultural imaterial do Brasil, forjado em terra fértil no quintal de dona Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata.


A baiana viveu entre os anos 1899 e 1924, na capital carioca, numa região portuária, conhecida como Pequena África e foi uma das grandes influências para o surgimento e resistência do samba no Rio de Janeiro, no início do século XX.


Além disso, foi precursora da tradição das baianas quituteiras, conhecidas como “Tias Baianas”, responsáveis por transmitir a cultura popular trazida da Bahia, e unindo à cultura do Rio de Janeiro ao seu redor, inundando a comunidade de música, dança e celebrações.


Foi no quintal de sua casa, na rua Visconde de Itaúna, capital da “Pequena África”, que o primeiro samba foi gravado, a música “Pelo Telefone”, em 1916, composta pelo sambista Donga.


Mãe-de-santo, Tia Ciata festejava seus orixás, sendo conhecidas suas festas de São Cosme e Damião e de sua Oxum, Nossa Senhora da Conceição. Nas celebrações, se destacava nas rodas de samba partido-alto e seu neto Bucy Moreira aprendeu com ela o segredo do "miudinho", uma forma de sambar de pés juntos que exige destreza e elegância, no qual Ciata era mestre.


Diante de um cenário hostil, onde sambistas eram associados à criminalidade, o samba encontrava em Tia Ciata, o espaço acolhedor que precisava para se manifestar de forma livre e alegre, como o é. Como legado, deixou o papel e a caneta para que novas histórias de mulheres no samba fossem escritas: das que fazem o samba atualmente.

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Tia Ciata - Reprodução

AS MULHERES QUE TRANSFORMARAM O SAMBA

Além de autoridade religiosa que abençoava os terreiros e os primeiros encontros entre os músicos, as mulheres do samba também preparavam a comida que alimentava os compositores sambistas.

Mas não apenas. As chamadas “pastoras”- ligadas principalmente às velhas guardas das escolas de samba - abdicaram do protagonismo do canto solo e uniram as vozes no canto coletivo dos coros femininos do samba de raiz e assim embalavam o ritmo.


Mas à medida que o samba invade as avenidas e palcos, se afastando do terreiro, o coro feminino também perde o lugar enquanto elemento fundamental para que o samba aconteça. Não sem antes abrir alas para as mulheres que quebraram as barreiras e tomariam o espaço como protagonistas, a exemplo de Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra e Teresa Cristina.


Tais precursoras do samba representam toda uma luta para que as mulheres continuem a ocupar mais lugares na cena do gênero. Dessa forma, não se levanta um debate sobre a importância das mulheres da comunidade para que o samba tornasse o que é hoje, mas sim do espaço que essas figuras femininas ocupam nas rodas de samba, nas composições e palcos do mercado fonográfico.


Apesar dos tempos terem mudado, o preconceito ainda existe e, através do ritmo, elas mostram que existem.


TEM MULHER NA RODA DE SAMBA EM BELÉM

Estampados em agendas culturais e anúncios de show nos jornais da cidade, o nome da sambista, coordenadora do Coletivo “Tem Mulher na Roda de Samba” e intérprete da escola de samba Piratas da Batucada, Cris Matos, se cruza com a da cantora e compositora sambista Rafaela Travassos. Apesar da visibilidade sobre o trabalho, não se destaca muito sobre a memória e relevância que as mulheres sambistas detém do segmento musical, sua pluralidade e desafios particulares na caminhada até aqui.


Cris Matos e Rafaela Travassos são duas gerações de mulheres interligadas com um único propósito: não deixar o samba cantado, tocado e composto por mulheres, morrer.

A FORÇA DO COLETIVO

O Coletivo “Tem Mulher na Roda de Samba”, nasceu em 2022, após o 2º Encontro Nacional e Internacional de Mulheres na Roda de Samba. A coordenadora Cris Matos, comenta que as rodas de samba promovidas pelo grupo buscam abraçar as mulheres que já estão no cenário da música, além de lançar e fortalecer as sambistas que estão chegando.
















Intérprete de samba-enredo na escola de samba Piratas da Batucada há 12 anos, a sambista afirma que seu contato com o samba vem desde sempre, pois o ritmo está presente em tudo, e que suas influências são de uma “gama de mulheres maravilhosas como Clara Nunes, Alcione, Leci Brandão”, entre outras. Cris Matos explica como tem sido o trabalho do coletivo:


“O coletivo Tem Mulher na Roda de Samba é um trabalho árduo, mas lindo e desafiador de reunir mulheres sambistas; cantoras; musicistas; produtoras culturais; fotógrafas; técnicas de som; que atuam no audiovisual, cenário e iluminação. Então, tem todos os profissionais que envolvem a formação e a construção de uma roda de samba. Conseguimos neste cenário, hoje, abraçar todas essas mulheres, numa proposta de fazer uma grande roda feita e pensada desde o início por mulheres”.



Em 2020, o coletivo abriu o show do grupo “Entre Elas”, além de se apresentar no aniversário de Belém e abrir o show da cantora Tereza Cristina na Bienal de Artes de Belém de 2022. A cantora ressalta que as mulheres sempre estiveram presentes no samba e ainda explica sobre o maior desafio no cenário.


Cris Matos - Arquivo Pessoal

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A sambista também avalia que as mulheres do samba em Belém já estão deixando suas marcas e, principalmente, um legado para outras que virão

SAMBA COMO EXPRESSÃO

Rafaela Travassos - João Pereira/Divulgação

“Hoje graças a Deus tem muitos movimentos, coletivos pelo Brasil inteiro que servem para apoiar a gente, levantar nossa moral e eu faço parte do coletivo Tem Mulher na Roda de Samba, que é um coletivo que me abraçou, né?”, conta a sambista raiz Rafaela Travassos que integra o coletivo “Tem Mulher na Roda de Samba”.


Na praça, no barzinho ou num aniversário, o importante para a cantora é dar apoio umas às outras, e ocupar os espaços por direito. Rafaela conta que sempre viveu cercada de músicos e desde a sua infância já sonhava em viver da música.


“Desde muito pequena, nas reuniões de família, meu tio por parte de mãe, que é músico também, me colocava para cantar, fazia pegadinha comigo para eu conseguir cantar no tom e aí a coisa foi acontecendo. Eu sempre soube desde criança que aquilo ali para mim ia ser uma realidade, sempre quis que aquilo fosse minha realidade”, pontua.


Hoje, com uma década de carreira, a cantora revela que o projeto da família “Samba da Feira”, no bairro da Cidade Nova 6, em Ananindeua, foi o seu primeiro contato rumo à consolidação da carreira profissional.


A história do projeto nasceu com o pai da cantora, Betão Travassos que, enquanto vendedor de comida e amante do samba, decidiu criar a roda de samba para reunir os trabalhadores da feira, toda segunda-feira. Logo, o evento tornou-se uma referência não só para os sambistas de Ananindeua, como em toda a região metropolitana.


“Então, toda segunda-feira tinha essa roda de samba e foi lá que eu me descobri, né? Foi lá que me deram oportunidade junto com a minha família, e meu repertório começou a crescer”, continua.


A caçula de três irmãos, também músicos e sambistas, cresceu ambientada num espaço masculino. Assim, ela considera que os percalços enfrentados por ser mulher e ocupar os espaços foram “tranquilos”.


“Sempre foi mais tranquilo para mim nessa parte porque já cheguei num projeto que estava com o nome na época, então, querendo ou não, a gente acaba sendo mais apadrinhado, vamos dizer assim. Não que não tenha passado por dificuldades, por constrangimentos. Eu já passei sim, mas comparada às minhas outras colegas eu acho que comecei assim com o pé direito, sabe?”, explica.


Mesmo neste contexto, a cantora e compositora concorda que a luta por protagonismo na cena é diária e, no imaginário das pessoas que integram o cenário do ritmo, a posição das mulheres ainda é algo limitado ao cuidado com os demais e ao próprio corpo feminino. Pontos que precisam ser superados.

Rafaela Travassos finaliza afirmando que o palco, as rodas de samba, suas apresentações artísticas no geral são formas de retratar questões sociais, como o racismo e o machismo. “ Um dia desses eu vi um posto no instagram que dizia assim, ‘Se tá difícil falar, cante’, então é isso o que eu faço nas minhas apresentações, eu canto em forma de protesto, nada melhor do que uma canção para deixar o tema abordado, porque música deixa a gente mais leve e faz com a gente pense sobre o tema”, disse.

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FICHA TÉCNICA

Trabalho de Conclusão de Curso

Ana Laura Costa

Susan Santiago


Direção de Arte

Edmond Soares e Luiza Carvalho


"O Samba e o Santo"

Produção, Reportagem e Vídeo

Susan Santiago


Fotos

Carla Cabral - Arquivo Pessoal;

Diego Xavier - Arquivo Pessoal/Divulgação;

Karen Tavares - Marcelo Lelis/Divulgação;

Babalorixá Denilson de Oxaguiã - Arquivo Pessoal;

Marilu Campelo - Susan Santiago


"Tem mulher no samba"

Produção e Reportagem: Ana Laura Costa


Fotos

Cris Matos - Arquivo Pessoal

Rafaela Travassos - João Pereira/Divulgação

Tia Ciata - Reprodução internet



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